Na antiga Kioto, há mais de 500 anos,
jovens monges zen-budistas carregavam pedras mornas em seus hábitos para
mascarar a fome. Nascia o kaiseki (kai=ventre; seki=pedra).
Até o século 16, o nome batizou uma parte
da cerimônia do chá servida aos viajantes que paravam nas ryokan, hospedarias
tradicionais de Kioto. A refeição kaiseki consistia, então, de uma
tigela de missô e três pratos.
Hoje, nos restaurantes, o termo designa um
artístico e refinado menu degustação. Uma sequência de sete a nove pratos em
ordem específica de serviço e cocção, é levada à mesa em delicados recipientes,
com intervalos precisos.
***
Acompanhada de duas crianças famintas,
adentrei o Rosanjin, um dos três
restaurantes em Nova York que melhor executam o ritual kaiseki. Nem uma pedrinha
sequer mascarava nossa fome.
Anunciei minha reserva e ouvi: “Sówi, wi
dón têi no childên unda tãhtín.” (que em japanglês significa “desculpe, não
aceitamos crianças com menos de 13 anos”). Não, não fiz cara de monge. Meu olhar
nada zen budista acompanhou a voz, duas oitavas abaixo, argumentando que isso
deveria ter sido dito no momento da reserva.
Como a comunicação parecia não ser nosso
forte, não movi um músculo sequer em direção aos dois graus abaixo de zero que
se instalaram na minha orelha esquerda por conta de uma pequena fresta da porta
de entrada. Depois de uma longa troca de olhares à la Kill Bill, com trilha
sonora mental e tudo, “enguicei” a hostess. Desconcertada, decidiu perguntar ao
dono se poderíamos nos sentar.
Finalmente adentramos no território sóbrio
e escuro, em vermelho e preto, no qual crianças jamais haviam pisado. O
exército inimigo consistia da hostess, dublê de garçonete e de uma outra moça
igualmente simpática e bonita. Não me deixei trair pelas aparências; por trás
daqueles sorrisos havia inúmeras dúvidas: eles pagarão o preço cheio do menu
pelas crianças? Serão pequenos demônios que incomodarão os demais clientes?
Devolverão os pratos? Cuspirão em mim?
Do lado de cá do front, temia que não suportassem
a batalha de ingredientes desconhecidos e excesso de etapas. Num tom firme,
calmo e preciso anunciei: “Filhos, são oito pratos e é isso.”.
Tomei a poção mágica para garantir a
coragem. Era o saquê Yuji no Bosha, cuja tradução é algo como “cabana na neve”.
Aquilo me inspirou: eu estava na cabana, a neve rolava lá fora e nem a pau
enfrentaria o frio antes dos oito pratos.
Olhares assustados acompanharam a chegada
do primeiro desafio.
O abre-alas consistia de lascas de
caranguejo com baby tatsoi, cogumelos enoki e pignolis marinados em caldo de
bonito. Nem eu havia entendido a descrição do prato em “japanglês”, que dirá
meus pobres soldados. Fosse em português, perdíamos a guerra. Confusos, me
encaravam como quem pede permissão para ir adiante. Com um aceno de cabeça, dei
a ordem e meu pequeno exército seguiu marchando. Uma cutucada com o garfo aqui,
uma separada de folha ali, e vejo minha filha menor colocar na boca um dos
ingredientes. Depois de alguns segundos de apreensão em que não respirei ...
ela gostou.
Passada a primeira luta, seguimos com os
sashimis de atum blue fin,
olho-de-boi, fluke e golden snapper. Sashimis nunca foram
desafio para as crianças cariocas. Avante!
Em seguida, um nada ameaçador olho-de-boi
grelhado e marinado em yuzu e missô
branco, que deixava um gosto untuoso e doce na boca. Maravilhoso.
O exército inimigo começava a estremecer, e
então veio com tudo: um dumpling de peixe com juliana de cebolinha, wasabi fresco, cogumelos matsutake,
caldo de peixe levemente defumado, flor de crisântemo e folha de ouro ameaçava
derrubá-los. “We will never surrender!”, pensei. Enquanto ninguém olhava e com
um golpe rápido de fazer inveja a qualquer samurai, arrematei metade dos
pratos de cada filho.
Um tempura de linguado enrolado em folha de
shiso, outro de lula enrolada em alga, e ainda tempuras de batata doce e
ervilha foram apresentados com um sorriso nos lábios. Ora, toda mãe sabe que
crianças comerão qualquer coisa empanada e frita. Sequer piscaram.
Exaustos e quase sem forças, ainda
cutucaram algo do arroz tradicional cozido no caldo de peixe, com cogumelos
shimeji, legumes em picles e sopa de missô vermelho.
O inimigo lutou até o fim, com uma última
investida na forma de um sorvete de chá verde com pudim de feijão azuki e romã.
Vitoriosos, meus soldados lamberam os beiços.
O salão, em silêncio, nos olhava
respeitosamente. Contive o impulso ridículo de fazer um high-five com meu
filho. Finda a batalha, a garçonete pergunta se éramos do Brasil e afirma
saber que tínhamos a maior colônia fora do Japão. Em seguida, completa: “Bem
que percebi. Com a naturalidade com que eles comeram, nossa cozinha deve ser
como a da “mamma” não?”
Pisquei para as crianças e disse a eles
baixinho: “Desta ‘mamma’, com certeza!”
***
Esta história é baseada em pratos reais, mas a fantasia que se desenrolou na cabeça da autora, não. Exceto a pequena confusão da reserva, o serviço foi excelente e a comida, fantástica. Este filme, definitivamente, não é recomendado para menores de 13 anos.
ROSANJIN
www.rosanjintribeca.com
101, Duane St. - New York
212.346.0664
Sensacional!! Que texto incrível. Uma aula de história, comida, arte e tudo isso com uma narrativa envolvente, acho que já li umas cinco vezes. Magnífico!!
ResponderExcluirmuito obrigada, Flavia querida! Fico muito feliz! beijocas.
ExcluirTexto simplesmente perfeito. Delicioso de ler.
ResponderExcluirobrigada!!! E delicioso de comer também! ;)
ExcluirHAhahahaha Boa aventura!
ResponderExcluirAmanhã começará a minha em NYC. Só 4 noites e com menos gastronomia, mas haverá boas batalhas.
bjs
Você tem filhos, Henrique?
ExcluirNão, Cristiana. Mas a minha escudeira fiel as vezes refuga de algumas aventuras gastronômicas. rs
ExcluirHoje é meu último dia em NYC... Devo ir ao Peter Luger.
Bjs
Ai, que delíciaaaaaa! Pede um steak for 3! (um pra mim...) Beijos e divirta-se!
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