segunda-feira, 2 de maio de 2011

Templos Modernos - Cracco, Milão

Texto feito especialmente para o site Talheres, Cheguei!

Em aproximadamente 850 anos antes de Cristo, Assurnasirpal II, rei Persa, inaugurou seu novo palácio com uma festa de dez dias, custeada através de tributos, para nada menos que 70 mil convidados. O ponto alto era um suntuoso banquete, no qual iguarias raras eram trazidas de regiões remotas para enfatizar o poder do governante.

Sorriso contido diante da imensa carta de vinhos.

Nos tempos modernos os templos são outros, e os banquetes são fins em si mesmos.

Dia desses, estive no templo do “rei” Carlo Cracco, em Milão, chef que coleciona estrelas por onde quer que passe. Do Gualtiero Marchesi aos dois “Alains”, o Ducasse e o Sanderens, a constelação de Cracco já soma 11 estrelas Michelin.

Nos rituais gastronômicos de hoje, quem quiser escrever seu nome na história dos domínios estelares, paga vultosas quantias ao dono do palácio. Em troca, o visitante espera muito mais do que comida: quer um belo cenário, uma procissão de pratos, talheres, copos, encantamento e muito prazer.

Ao entrar no Cracco a Cena Trimalchionis, de Satyricon (séc I) me veio imediatamente à cabeça. Não só pela teatralidade da entrada como por um detalhe importante: ao chegarem à casa de Trimalquio, os hóspedes eram recebidos por um porteiro e levados por uma galeria cercada de colunas para uma imediata visita aos banhos. O prelúdio tinha por objetivo mostrar que se tratava de momento de ócio, não de negócio. Estranhamente, no Cracco, a estória é a mesma. A hostess nos recebe indicando os banheiros, situados no alto de uma escadaria, ao final da qual, não sei bem por que, esperava aplausos.

O salão do Cracco... ou seria a sede do Itaú Personnalité?
Arquitetonicamente o restaurante lembra a sede de um banco, com muito mármore e ar sóbrio de um minimalismo “executivo”. Não há música e era uma quarta-feira no almoço. Em respeito ao espírito majestático, limitei-me [milagrosamente] a sussurrar.

A jovem e simpática sommelière nos oferece a carta de vinhos que parecia o plano-diretor de uma cidade-estado. Contive a respiração a cada virada de página. Para regar e animar a escolha, uma taça de Franciacorta nos foi presenteada na abertura dos trabalhos.

Em seguida, um garçom eficiente apresenta as opções do cardápio. Como não perco tempo nomeando a minha gula e nunca desperdiço uma refeição estrelada, escolhi prontamente o menu com o maior número de pratos possível.

A apresentação dos pratos é ousada, fato nada comum para os tradicionais restaurantes italianos, a começar pela “salada” do couvert : 3 tipos de batata, cenoura, abobrinha e outros legumes secos numa adorável caixinha de acetato. O objetivo é que esta salada seca lhe acompanhe ao longo de toda a refeição. 

O couvert para presente.

Aos colecionadores de estrelas faço um aviso: a cozinha de Cracco é sutil. Nada equiparável aos pares franceses de mesma patente. Não espere pratos parrudos, molhos densos e manteiga onipresente. Mergulhei com alegria nos sabores brandos, mas complexos, que se “desdobram” na boca numa profusão de descobertas. 


Um clássico da cozinha italiana: maionese de batatas
com legumes entre discos de caramelo







Melancia com amêndoas em lascas,
leite de amêndoas e mexilhões.

A perfeita espuma de mascarpone, bacon
e pão com toque defumado.
Ostras cozidas com creme de figo e manteiga
maravilhosamente aveludada, micro alcaparras
e sálvia crocante. A melhor da refeição.
Legumes, peixes e frutos do mar, com mexilhões,
algas e tomates secos sob manto de folha de arroz.
Salada de salsa no vapor (Cracco ama salsa) com ouriço,
orquídea, micro amêndoas amanteigadas e gergelim.
Poesia no prato
Vieiras sob salada e molho de bacalhau seco.
Também com folha de papel de arroz.
Escargots cozidos sobre um creme brûlée feito
inteiramente com azeite extra-virgem.
Original e espetacular
Peixe cru (algo entre o pargo e o sargo) sobre nougat crocante de
sal. O nougat não é comestível; é feito apenas para
aromatizar o peixe. A sutileza de aromas me emocionou.
Creme de arroz cozido no leite com ovo de codorna
à baixa temperatura, marinado com açafrão. Não surpreendeu.
Spaghetti com salsa. Aqui, a tradição italiana finalmente
se fez presente.
Bolinhas de papel de arroz de inspiração oriental e alma italiana:
com recheios de pimentão, abobrinha, espinafre e berinjela.
Toques de cominho e sementes que me pareceram de kiwi.
Um naco generoso de fassone, raça nobre de gado autóctone
do Sul do Piemonte, com folhas de funcho e batatas.
Divino pombo com flor de sal e legumes ao molho
de frutas vermelhas e coentro
Pra quem é louco por tutano, como eu, esse prato é
absolutamente indispensável: pão-de-ló feito com caldo
de carne sob lâmina de tutano. O prato já parcialmente
devorado atesta meu estado de espírito.
Creme de uvas com pignoles e azeite. Delicado, refrescante e
impecável.
Cannoli açucarado com figos e creme de queijo e especiarias.
Bolinhas de avelã com chocolate e “sorbeto” de uvas e amaranto.
Sopa de figos com açafrão-da-terra.
Salada de frutas secas minimalista.

Café... Amém.


Minha obsessão pessoal: tomar um vinho da "minha" safra,
considerada uma das piores de todos os tempos
em quase todas as regiões vinícolas do Mundo.
Invariavelmente um furo no bolso e outro na alma.
Entendi, ao final do almoço, a ausência de música ambiente. A sensação de plenitude que nos toma permite que cada um preencha o silêncio com seus tons e compassos favoritos. O banquete durou três horas; a memória da refeição durará a vida inteira. O tempo gastronômico é, sem dúvida, relativo.

RISTORANTE CRACCO 
Via Victor Hugo, 4
Milão, Itália
Tel: 02 876774

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