Primeiro Ato.
Minha mãe é um gênio. Arqueóloga,
antropóloga, arqueofísica, geóloga, autora de uns 20 livros, portadora da ímpar
“legion d’honneur” e tantos outros títulos que me convenceram, desde a mais
tenra idade, a jamais almejá-los, a não ser que quisesse destruir de vez minha
autoestima. Meu único consolo é mostrar meus parcos conhecimentos gastronômicos
aos quais ouve atentamente, como cabe a uma boa mãe, mas que absolutamente
não a impressionam.
Como todo gênio, tem lá suas
excentricidades. Nunca abriu um cardápio e faz seu pedido à primeira pessoa que
encontra no restaurante, antes ou logo após se sentar. Tudo que se habituou a comer deve ser absolutamente cozido ou fritíssimo, até que não se
possa distinguir uma massa de um purê, ou um cordeiro de um pato.
Corta a cena.
Manuel de Oliveira tem mais anos de
profissão do que tenho de vida. Durante 27 anos trabalhou na cozinha do
respeitado Fialho, em Évora, até decidir abrir seu Tasquinha do Oliveira a
apenas uma quadra de distância, no belíssimo centro histórico. Seu pequeno
bistrô, com 16 anos de vida, é considerado por muitos melhor que seu
predecessor. Nas mãos de pessoas competentes, exercitar os mesmos pratos por 16
anos é uma forma de leva-los à perfeição.
Segundo Ato. Mamãe conhece Manuel.
-
“Mamãe, por favor, não comente
que escrevo sobre restaurantes porque tira a naturalidade da coisa.”
-
“Imagine, minha filha... você
tira esse troço enorme (a câmera) da bolsa junto com um caderninho preto, fica
tomando notas e acha que ninguém vai notar!” – bufava impacientemente. E completa: “Eu quero porco. O porco daqui é do jeito que eu gosto, bem
crocante?”.
-
“Não, mamãe. Aqui é outra
estória, mas igualmente delicioso”.
-
“Ah, então não é o que eu
gosto.” – resmungava ainda mais impaciente, batendo suas unhas umas contra as
outras, movimento que, desde minha infância, reconheço como o melhor tradutor
de sua ansiedade e, principalmente, de fome.
Fomos as primeiras a entrar no bistrô de 12
lugares.
Sr. Manuel recebeu-nos sozinho, como convinha ao espaço acanhado.
-
“Duas?” – perguntou friamente.
-
“Sim, obrigada.”
-
“O Sr. tem porco?” – perguntou minha mãe,
como de costume, antes de sentar-se.
-
“Certamente.”
-
“Como o Sr. prepara seu porco?”
– perguntou mamãe erguendo uma das sobrancelhas e apoiando uma mão inquisidora sob o queixo. Pretendia, é claro, criar mais um discípulo da sua
linha gastronômica. Limitei-me a suspirar resignada e olhar para o chão, já exausta...
-
“Nosso porco é assado durante
várias horas em seu suco”.
-
“Deixe eu lhe explicar como EU
preparo meu porco. Primeiro eu cozinho muito a carne porque tenho horror a
porco cru, depois eu asso, asso, asso e frito, frito, frito, até ficar bem crocante, entende?
O Sr. pode fazer assim?”
Sabe-se lá em quantos idiomas o Sr.Manuel xingou mentalmente minha
mãe, mas tão exausto quanto eu, limitou-se a dizer entre dentes:
-
“Cá não temos...”.
-
“E o seu bacalhau? Veja lá que
eu comi um excelente bacalhau em Lisboa, num local bem simples, hein?! O que o
Sr. prepara é bem sequinho?”. A essa altura eu tinha certeza de que a única
coisa seca que iríamos digerir eram as respostas do Sr.Manuel.
-
“Não, Sra. É dessalgado por
vários dias, mergulhado e cozido em azeite até ficar bem macio.”
-
“O Sr. deixa no leite?”
-
“Não, Sra.”
-
“Sei... ahã... pode ser esse.
Vamos ver.” – grunhiu minha mãe, sem perder a pose.
Terceiro Ato. A Batalha.
Um delicioso caranguejo desfiado é colocado sobre a mesa. |
Cogumelos. |
O macio polvo com coentro. |
Queijo de ovelha alentejana, cremoso, intenso e untuoso. |
Pastéis de perdiz com alhos-poró, de gemer. |
Costeletas de cordeiro, empanadas à perfeição, crocantes e quentinhas. A essas alturas, mamãe, lambendo os dedos, dizia: "é coisa demais..." |
Pataniscas de bacalhau especiais, finíssimas e delicadamente empanadas. |
Meu prato, um cordeiro assado com batatas. |
Com um discreto sorriso nos lábios, Sr.Manuel dá o golpe de misericórdia e serve o delicioso Bacalhau à Tasquinha. |
O bacalhau é assado no azeite com alho e cebolas, e vem com purê, alcaparras e sementes de aroeira. Divino. O melhor que já comi. |
A tradicional Encharcada de Mourão e um
Cericá com ameixas Rainha Claudia,
gordas, suculentas, divinas.
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Mamãe gemeu disfarçadamente em alguns
pratos, mas não se converteu. Manuel tinha a certeza de que havia
impressionado. Despediram-se burocraticamente.
Ao sair, como sempre, ela me lança um
olhar terno, carregado de piedade e incentivo, e afirma: “Minha filha, que alegria! Você
sempre me leva a lugares incríveis!”
***
TASQUINHA DO OLIVEIRA
Rua Cândido dos Reis 45 - A
Évora
Évora
Tel: 266744841
Horário de Funcionamento: das 09:00 às 15:00 e das 17:00 às 24:00
Fechado entre: 1 a 15 de Agosto.
Que delícia! Como é bom começar o ano com uma matéria assim tão saborosa. Ela vai bem além de uma crítica gastronômica... Show de bola!
ResponderExcluirA única tristeza foi eu não ter ido à Tasquinha...
Um 2012 cheio de alegrias e belos pratos!
Obrigada, Oscar! Infelizmente os posts mentais são muito mais rápidos que a minha capacidade de materializá-los! Queria ter dado essa dica pra vocês, mas da próxima serei mais rápida... ou melhor: da próxima viajamos juntos! beijo grande e Feliz Ano Novo!
ResponderExcluirAmei o post, a descrição das comidas me deu até fome. Mas impagável mesmo deve ter sido as caras e bocas da sua mãe!
ResponderExcluirEndereço já anotado para saborear essa maravilhas qdo em Portugal!
Feliz ano novo!
Texto maravilhoso! Essa é a mamãe... A quem será que eu puxei?
ResponderExcluirQue bom, Mary! Realmente a casa é excelente, mas a companhia da mamãe é o molho...
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