sábado, 31 de dezembro de 2011

Um Bacalhau em Três Atos - Tasquinha do Oliveira, Évora - Portugal


Primeiro Ato.

Minha mãe é um gênio. Arqueóloga, antropóloga, arqueofísica, geóloga, autora de uns 20 livros, portadora da ímpar “legion d’honneur” e tantos outros títulos que me convenceram, desde a mais tenra idade, a jamais almejá-los, a não ser que quisesse destruir de vez minha autoestima. Meu único consolo é mostrar meus parcos conhecimentos gastronômicos aos quais ouve atentamente, como cabe a uma boa mãe, mas que absolutamente não a impressionam.

Como todo gênio, tem lá suas excentricidades. Nunca abriu um cardápio e faz seu pedido à primeira pessoa que encontra no restaurante, antes ou logo após se sentar. Tudo que se habituou a comer deve ser absolutamente cozido ou fritíssimo, até que não se possa distinguir uma massa de um purê, ou um cordeiro de um pato.


Corta a cena.

Manuel de Oliveira tem mais anos de profissão do que tenho de vida. Durante 27 anos trabalhou na cozinha do respeitado Fialho, em Évora, até decidir abrir seu Tasquinha do Oliveira a apenas uma quadra de distância, no belíssimo centro histórico. Seu pequeno bistrô, com 16 anos de vida, é considerado por muitos melhor que seu predecessor. Nas mãos de pessoas competentes, exercitar os mesmos pratos por 16 anos é uma forma de leva-los à perfeição.

Segundo Ato. Mamãe conhece Manuel.


-       “Mamãe, por favor, não comente que escrevo sobre restaurantes porque tira a naturalidade da coisa.”
-       “Imagine, minha filha... você tira esse troço enorme (a câmera) da bolsa junto com um caderninho preto, fica tomando notas e acha que ninguém vai notar!” – bufava impacientemente. E completa: “Eu quero porco. O porco daqui é do jeito que eu gosto, bem crocante?”.
-       “Não, mamãe. Aqui é outra estória, mas igualmente delicioso”.
-       “Ah, então não é o que eu gosto.” – resmungava ainda mais impaciente, batendo suas unhas umas contra as outras, movimento que, desde minha infância, reconheço como o melhor tradutor de sua ansiedade e, principalmente, de fome.

Fomos as primeiras a entrar no bistrô de 12 lugares. 
Sr. Manuel recebeu-nos sozinho, como convinha ao espaço acanhado.

-       “Duas?” – perguntou friamente.
-       “Sim, obrigada.”
-       “O Sr. tem porco?” – perguntou minha mãe, como de costume, antes de sentar-se.
-       “Certamente.”
-       “Como o Sr. prepara seu porco?” – perguntou mamãe erguendo uma das sobrancelhas e apoiando uma mão inquisidora sob o queixo. Pretendia, é claro, criar mais um discípulo da sua linha gastronômica. Limitei-me a suspirar resignada e olhar para o chão, já exausta...
-       “Nosso porco é assado durante várias horas em seu suco”.
-       “Deixe eu lhe explicar como EU preparo meu porco. Primeiro eu cozinho muito a carne porque tenho horror a porco cru, depois eu asso, asso, asso e frito, frito, frito, até ficar bem crocante, entende? O Sr. pode fazer assim?”

Sabe-se lá em quantos idiomas o Sr.Manuel xingou mentalmente minha mãe, mas tão exausto quanto eu, limitou-se a dizer entre dentes:

-       “Cá não temos...”.
-       “E o seu bacalhau? Veja lá que eu comi um excelente bacalhau em Lisboa, num local bem simples, hein?! O que o Sr. prepara é bem sequinho?”. A essa altura eu tinha certeza de que a única coisa seca que iríamos digerir eram as respostas do Sr.Manuel.
-       “Não, Sra. É dessalgado por vários dias, mergulhado e cozido em azeite até ficar bem macio.”
-       “O Sr. deixa no leite?”
-       “Não, Sra.”
-       “Sei... ahã... pode ser esse. Vamos ver.” – grunhiu minha mãe, sem perder a pose.

Terceiro Ato. A Batalha.


Um delicioso caranguejo desfiado é colocado sobre a mesa.

Cogumelos.
O macio polvo com coentro.
Queijo de ovelha alentejana, cremoso, intenso e untuoso.
Pastéis de perdiz com alhos-poró, de gemer.
Costeletas de cordeiro, empanadas à perfeição,
crocantes e quentinhas. A essas alturas, mamãe,
lambendo os dedos, dizia: "é coisa demais..."
Pataniscas de bacalhau especiais, finíssimas e
delicadamente empanadas. 
Meu prato, um cordeiro assado com batatas.
Com um discreto sorriso nos lábios,
Sr.Manuel dá o golpe de misericórdia e
serve o delicioso Bacalhau à Tasquinha.
O bacalhau é assado no azeite com alho e cebolas,
e vem com purê, alcaparras e sementes de aroeira.
Divino. O melhor que já comi.
A tradicional Encharcada de Mourão e um
Cericá com ameixas Rainha Claudia, 
gordas, suculentas, divinas.
Mamãe gemeu disfarçadamente em alguns pratos, mas não se converteu. Manuel tinha a certeza de que havia impressionado. Despediram-se burocraticamente.

Ao sair, como sempre, ela me lança um olhar terno, carregado de piedade e incentivo, e afirma: “Minha filha, que alegria! Você sempre me leva a lugares incríveis!”

***

TASQUINHA DO OLIVEIRA
Rua Cândido dos Reis 45 - A
Évora
Tel: 266744841
Horário de Funcionamento: das 09:00 às 15:00 e das 17:00 às 24:00
Fechado entre: 1 a 15 de Agosto.






5 comentários:

  1. Que delícia! Como é bom começar o ano com uma matéria assim tão saborosa. Ela vai bem além de uma crítica gastronômica... Show de bola!

    A única tristeza foi eu não ter ido à Tasquinha...

    Um 2012 cheio de alegrias e belos pratos!

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  2. Obrigada, Oscar! Infelizmente os posts mentais são muito mais rápidos que a minha capacidade de materializá-los! Queria ter dado essa dica pra vocês, mas da próxima serei mais rápida... ou melhor: da próxima viajamos juntos! beijo grande e Feliz Ano Novo!

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  3. Amei o post, a descrição das comidas me deu até fome. Mas impagável mesmo deve ter sido as caras e bocas da sua mãe!

    Endereço já anotado para saborear essa maravilhas qdo em Portugal!

    Feliz ano novo!

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  4. Texto maravilhoso! Essa é a mamãe... A quem será que eu puxei?

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  5. Que bom, Mary! Realmente a casa é excelente, mas a companhia da mamãe é o molho...

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